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Terras caídas, esperanças submersas: A agonia do Arquipélago do Bailique no Amapá

  • Foto do escritor: Solano Ferreira
    Solano Ferreira
  • 19 de mar.
  • 5 min de leitura

Foto: Defesa Civil/Amapá

As tentativas de mitigação por parte do poder público têm se mostrado notoriamente insuficientes diante da magnitude do problema
As tentativas de mitigação por parte do poder público têm se mostrado notoriamente insuficientes diante da magnitude do problema

Por Joel Elias


No extremo leste do Amapá, o Arquipélago do Bailique enfrenta uma crise ambiental sem precedentes que ameaça não apenas o território físico, mas toda uma forma de vida desenvolvida ao longo de gerações. Este conjunto de oito ilhas, onde o majestoso Rio Amazonas encontra o Oceano Atlântico, tem sido palco de transformações ambientais dramáticas que colocam em risco a permanência das aproximadamente 13 mil pessoas distribuídas em 57 comunidades ribeirinhas. Dois fenômenos têm se intensificado de maneira alarmante nos últimos anos: a erosão contínua das margens dos rios, fenômeno natural conhecido como "terras caídas", e um processo de salinização sem precedentes das águas que tradicionalmente abasteciam essas comunidades, tornando-as impróprias para consumo humano e alterando profundamente o ecossistema local.


A realidade do Bailique representa um microcosmo das complexas interações entre fatores naturais e antropogênicos que afetam a bacia amazônica como um todo. Estudos recentes conduzidos pela Universidade Federal do Amapá (Unifap) e pela Universidade Estadual do Amapá (UEAP) documentam alterações preocupantes na qualidade das águas, com implicações diretas para a sobrevivência dessas comunidades. Durante o período de seca amazônica, as águas que abasteciam as comunidades do arquipélago, que normalmente seriam classificadas como doces (com salinidade inferior a 0,05% ou 500ppm), passaram a ser classificadas como salobras, com valores superiores ao limite aceitável. De acordo com os moradores do arquipélago, esse processo de salinização é relativamente recente, tendo começado a ser percebido por volta do período seco de 2015, o que indica uma alteração significativa nas condições ambientais da região nos últimos anos.


Os impactos desta crise hídrica manifestam-se cotidianamente na vida da população local. Problemas de doenças relacionados ao consumo e uso da água salobra multiplicam-se entre os moradores, com relatos frequentes de alergias, coceiras, feridas e dores estomacais. As análises realizadas pelos pesquisadores revelaram que diversos parâmetros importantes para a qualidade da água estiveram frequentemente fora dos padrões de potabilidade estabelecidos pela legislação brasileira. Cor e turbidez apresentaram valores elevados, especialmente nas comunidades do Bailique, e o parâmetro cloreto, diretamente relacionado à salinidade, frequentemente excedeu o limite permitido nos períodos analisados. Mais preocupante ainda é a presença de coliformes termotolerantes e Escherichia coli detectada tanto nas amostras de água superficial quanto nas residências, indicando contaminação microbiológica e ineficiência dos métodos simples de tratamento utilizados pelos moradores, como decantação e desinfecção por hipoclorito de sódio.


O processo de salinização observado na foz do Rio Amazonas pode estar relacionado a múltiplos fatores, naturais e humanos. Um dos possíveis contribuintes é a formação do canal Urucurituba, que conecta o Rio Araguari ao Rio Amazonas. Estudos indicam que, desde 2011, esse canal capturou até 98% da vazão do Rio Araguari que anteriormente desaguaria diretamente no oceano, levando à intrusão marinha no delta. Outro fator significativo pode ser a construção de três hidrelétricas no Rio Araguari em um raio de apenas 12 quilômetros: Cachoeira Caldeirão (ativa desde 2016), Ferreira Gomes (operante desde 2014) e Coaracy Nunes (inaugurada em 1976, sendo a primeira usina da Amazônia, responsável, inclusive, pela criação da estatal Eletronorte). Embora ainda não existam pesquisas conclusivas que comprovem a relação direta entre o represamento das barragens e o aumento da salinidade nas águas do Bailique, as evidências circunstanciais apontam para uma provável correlação. Este cenário local ainda se soma ao contexto mais amplo de mudanças climáticas globais, aumento do nível do mar e eventos extremos de seca na Amazônia, potencializando os efeitos da salinização.


As tentativas de mitigação por parte do poder público têm se mostrado notoriamente insuficientes diante da magnitude do problema. As iniciativas do Governo do Amapá, por meio da Companhia de Água e Esgoto do Amapá (Caesa), para transportar água potável ao arquipélago enfrentam problemas logísticos e questões de qualidade no produto fornecido. A proposta de armazenamento de água pelos moradores ignora a realidade socioeconômica das comunidades mais isoladas, que não dispõem de infraestrutura adequada para estocagem nem recursos para o transporte da água desde os pontos centrais até suas residências. A companhia também justifica a falta de estações de tratamento de água no arquipélago afirmando que, das quatro anteriormente existentes, três foram perdidas por conta das terras caídas, sendo inviável, segundo a empresa, investir em estruturas que seriam destruídas em poucos meses pela erosão — uma justificativa que, na prática, abandona essas comunidades à própria sorte.


Para além da crise hídrica, o arquipélago enfrenta sérios problemas de infraestrutura básica que agravam sua vulnerabilidade. A principal unidade escolar local, a Escola Bosque, já teve de interditar prédios devido às erosões e funciona com capacidade reduzida à metade. A falta de energia elétrica é um problema crônico, com constantes apagões que causam prejuízos aos comerciantes e riscos à população — paradoxalmente, apesar da presença de três hidrelétricas no Rio Araguari. A Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) alega que a distância do arquipélago e o fenômeno das terras caídas dificultam a manutenção da rede elétrica, mas pouco tem feito para buscar soluções alternativas que garantam o fornecimento regular de energia para essas comunidades. Iniciativas pontuais, como a instalação de placas solares e uma estação de dessalinização na comunidade do Franquinho, revelam-se insuficientes pela baixa capacidade de produção e pela falta de manutenção adequada.


Mas os impactos ambientais da salinização vão muito além da questão imediata da água potável. Os peixes de água doce podem não se adaptar à quantidade de sal presente no rio, o que ameaça os modos tradicionais de pesca e alimentação, assim como a biodiversidade local. As plantas nativas também podem ser prejudicadas por não estarem adaptadas ao novo dinamismo de um ambiente salinizado. Estas alterações colocam em risco a sobrevivência física das comunidades, assim como todo um modo de vida e cultura desenvolvidos em estreita relação com as características específicas do ecossistema amazônico. O que está em jogo no Bailique não é apenas um território, mas um patrimônio cultural e ecológico de valor inestimável.


O caso do Arquipélago do Bailique ilustra, em escala local, desafios que tendem a se intensificar em toda a Amazônia diante das crescentes pressões ambientais globais e locais. É urgente o desenvolvimento de estratégias de adaptação e mitigação baseadas em investigações científicas sólidas sobre os fatores que afetam a qualidade da água e a intrusão salina na região amazônica. Mais do que soluções emergenciais, as comunidades do Bailique necessitam de políticas públicas estruturantes que considerem suas especificidades socioambientais e garantam seus direitos fundamentais. Enquanto o poder público se mostra incapaz de oferecer respostas efetivas, os habitantes do arquipélago enfrentam o dilema entre permanecer em um território cada vez mais hostil ou abandonar suas raízes, história e modo de vida. Em qualquer dos cenários, o Bailique corre o risco real de, gradualmente, desaparecer do mapa, levando consigo um capítulo importante da história amazônica e um alerta sobre os rumos do desenvolvimento que temos escolhido para a região.



* Joel Elias é jornalista e músico atuante na Amazônia brasileira.

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