Para atingir meta climática especialistas alertam que é preciso desenvolver sistemas de rastreabilidade para zerar o desmatamento causado por soja e carne especialmente no Cerrado.
© Silas Ismael / WWF-Brasil
Sem soluções efetivas para frear o desmatamento será inviável zerar as emissões líquidas de carbono dos sistemas de produção de alimentos e evitar que o planeta ultrapasse a temperatura média de 1,5°C - limite a partir do qual a ciência prevê um desastre climático em escala global. Esse alerta foi insistentemente repetido durante a 28ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP28 UNFCCC), realizada em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, de 30 de novembro a 13 de dezembro. No que diz respeito a medidas que envolvem as cadeias produtivas de commodities como soja e carne, contudo, algumas alternativas foram apresentadas por estudiosos durante o megaevento.
Em um painel focado na regulação e nos compromissos assumidos pelas nações signatárias do Acordo de Paris, realizado no dia 8 de dezembro, por exemplo, especialistas evidenciaram que investir em ferramentas de rastreabilidade das cadeias produtivas, no aprimoramento das leis e políticas internacionais e no engajamento de países, empresas e instituições financeiras deve ser prioridade no combate ao desmatamento. E que, sem uma ação que abarque essas diferentes frentes, será impossível erradicar o problema.
Guilherme Eidt, assessor de Políticas Públicas do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), chamou a atenção para a relevância da savana mais biodiversa do mundo: o Cerrado, bioma que se estende por todo o Brasil central, está presente em 11 estados e abriga as nascentes de oito das 12 principais bacias hidrográficas do Brasil, acumulando um estoque de 13,7 bilhões de toneladas de carbono.
Mas as pressões são tão intensas que o desmatamento no Cerrado brasileiro está fora de controle. Tanto que o bioma perdeu 11.011,7 km² de vegetação nativa entre agosto de 2022 e julho de 2023, de acordo com dados do PRODES Cerrado divulgados pelo governo federal no final de novembro. Trata-se da maior extensão devastada desde 2016. Os estados que mais desmataram foram Maranhão (2.929 km²), Tocantins (2.234 km²), Bahia (1.972 km²) e Piauí (1.128 km²). Todos pertencem ao Matopiba, a mais recente fronteira agrícola do país, evidenciando a relação entre o avanço da produção de commodities e a destruição ambiental.
“Há uma lacuna de proteção no Cerrado”, afirmou Eidt. De acordo com ele, 83 grupos de indígenas e populações tradicionais, que possuem um enorme conhecimento tradicional e conexão com o ambiente, vivem no bioma e são seus guardiões. “É preciso focar a legislação e as políticas públicas na proteção dos territórios dessas pessoas, evitando a conversão de áreas naturais e violações de direitos humanos”, salientou.
Cerca de 42% da agricultura brasileira está no Cerrado, destacou Eidt, e os dados recentes mostram que a devastação explodiu.“Mais da metade do desmatamento no bioma é causado pela produção de soja e está ligado a importantes empresas produtoras, traders, frigoríficos e instituições financeiras”, explicou.
Rastreabilidade é crucial
Uma das principais ferramentas para mudar essa realidade e obter uma produção e comércio sustentáveis no Cerrado é a implementação de sistemas de rastreabilidade de commodities agrícolas até as fazendas de origem, frisou Jean François Timmers, gerente de Políticas Públicas para Cadeias livres de Desmatamento e Conversão da Rede WWF.
“A rastreabilidade é uma das exigências-chave da nova legislação da União Europeia contra o desmatamento. A transparência que ela garante é um direito que foi exigido pelo consumidor, que não quer contribuir para as mudanças climáticas consumindo produtos ligados ao desmatamento. A rastreabilidade pressiona empresas a produzirem e comercializarem cumprindo as exigências legais e pode dar maior proteção às comunidades locais e seus territórios, sendo essa transparência um elemento crítico de prevenção de novas destruições ambientais e abusos de direitos humanos”, declarou.
Recursos técnicos não faltam para a adoção de soluções efetivas no Brasil e no mundo. “Temos as ferramentas, tecnologia e conhecimento para implementar sistemas de rastreabilidade que envolvam todos os fornecedores no território - sem custos maiores por ter um alcance mais amplo”, completou Timmers.
Nicole Polsterer, gerente de Consumo e Produção Sustentáveis da ONG Fern, destacou que a nova legislação da União Europeia pode ajudar a melhorar o arcabouço jurídico no Brasil. “Há um ano, a Europa adotou a primeira lei contra o desmatamento nas cadeias de suprimentos, regulando as sete commodities mais associadas à conversão de áreas naturais. Podemos aproveitá-la para aprimorar a governança florestal. Assim, essa lei ajuda a melhorar a situação reduzindo o desmatamento, mas também ajuda a implementar leis nacionais”, afirmou.
Brasil e China
O painel “Parceria China-Brasil para a Mudança Climática - Promovendo a Cadeia Verde de Valor”, realizado pelo WWF no dia 9 de dezembro, também destacou a necessidade de implementação de políticas que fomentem desmatamento zero no setor de alimentos. “Nós, do WWF, estamos totalmente comprometidos em promover e levar adiante esse diálogo com a China, a fim de trabalharmos juntos no mercado verde e eliminarmos o desmatamento e a conversão de habitats naturais da cadeia de fornecimento de commodities”, afirmou Mauricio Voivodic, diretor executivo do WWF-Brasil.
A China, lembrou Voivodic, é o maior importador de commodities do Brasil ligadas ao desmatamento e, por isso, tem uma grande responsabilidade como país. “O Brasil tem grande responsabilidade também em promover o desmatamento zero, com engajamento do governo, empresas e sociedade civil”, acrescentou.
Para isso, mecanismos de rastreabilidade são essenciais. “Cabe à China exigir a rastreabilidade para garantir que as commodities não venham de áreas devastadas do Brasil. Escolhendo commodities livres de desmatamento, as empresas chinesas vão enviar uma mensagem muito forte para os mercados, incluindo os exportadores brasileiros”, concluiu Voivodic.
Foco nos sistemas alimentares
Kirsten Schuijt, diretora geral do WWF International, lembrou que os sistemas alimentares são responsáveis por cerca de um terço das emissões globais de gases de efeito estufa e por 80% da perda de biodiversidade.
“A redução efetiva dessas emissões exige uma ação imediata para eliminar o desmatamento e conversão das cadeias de fornecimento de commodities. A produção de soja e carne, combinadas, responde por 40% das emissões do desmatamento ligado à atividade agrícola . A colaboração entre Brasil e China, atores-chave quando se trata de commodities, é incrivelmente importante para levar o mundo a um sistema alimentar global mais sustentável”, pontuou.
Bárbara Bomfim, especialista em Mercados de Carbono e Soluções com Base na Natureza do WWF-Brasil, ressaltou que as emissões dos sistemas alimentares precisam ser reduzidas em 80% para que seja possível cumprir a meta de 1,5°C, pois elas são amplamente impulsionadas pelo desmatamento em áreas de produção de commodities. “Modelagens feitas pelo WWF mostram que essa meta não pode ser atingida sem a uma rápida eliminação do desmatamento e da conversão de ecossistemas não-florestais como os do Cerrado”, destacou.
Tiro no pé
Se nenhuma ação for tomada, o desmatamento de áreas naturais ligadas à produção de commodities poderá comprometer o próprio agronegócio brasileiro, consequentemente produzindo problemas de segurança alimentar na China, de acordo com Raoni Rajão, diretor de Políticas de Controle do Desmatamento e Queimadas do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).
“Não apenas a mudança climática está alterando o regime de chuvas, mas também o desmatamento. Na Amazônia, perdemos cerca de um mês de estação de chuvas por ano e, no Cerrado, já perdemos um mês e meio. O Brasil é um dos únicos lugares do mundo onde se pode produzir duas safras diferentes em um ano, graças à extensão da estação chuvosa. Em algumas regiões, essa redução das chuvas já provocou uma redução de metade da produção”, relatou.
Segundo Rajão, além da relação comercial histórica, o Brasil e a China precisam estabelecer uma parceria robusta para se tornarem líderes climáticos. “Não se trata mais de modelar o futuro. As mudanças já estão acontecendo. A única maneira de lidar com isso é trabalharmos juntos para fortalecer nossas políticas ambientais, desenvolver sistemas de rastreabilidade para ter certeza de que a produção está seguindo a legislação. Sem isso, não alcançaremos as metas climáticas de que todos precisamos”, alertou.
Por Fábio de Castro, especial para o WWF-Brasil
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