Por Joel Elias *
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O que está dentro das "quatro linhas" da Constituição Federal é sagrado. A Carta Magna, construída sobre os alicerces do Estado Democrático de Direito, representa a vontade soberana do povo brasileiro, consagrada após anos de luta contra um regime autoritário. Contudo, quando um ex-presidente da República, derrotado nas urnas, declara ter "estudado todas as medidas possíveis dentro das quatro linhas", é necessário analisarmos não apenas a superfície de suas palavras, mas o âmago de sua intenção.
Ao afirmar publicamente que analisou tais medidas, Jair Bolsonaro forneceu a mais clara e inequívoca confissão do crime de tentativa de golpe de estado. A Constituição de 1988, conhecida como a Carta Cidadã, promulgada sob a liderança do então deputado federal Ulysses Guimarães, estabelece regras explícitas para a transição de poder. O artigo 77 determina que o candidato eleito deve ser diplomado para assumir a Presidência da República. Não há lacunas, atalhos ou “medidas possíveis” que permitam contornar este processo. A diplomação não é uma mera formalidade; é a confirmação oficial da vontade popular, expressa nas urnas e validada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Qualquer tentativa de impedir essa sequência, seja por meios diretos ou subterfúgios jurídicos travestidos de “legalidade”, constitui uma ruptura do pacto democrático. Ao estudar alternativas para impedir a posse do presidente eleito, Bolsonaro se posicionou contra o resultado eleitoral, desafiando a legitimidade do sistema e abrindo caminho para a instabilidade institucional. É aqui que reside a gravidade de sua confissão: não se trata de uma simples discussão teórica ou jurídica, mas de um esforço deliberado para desvirtuar o processo democrático.
Se aceitarmos a narrativa de que estudar “medidas legais” para se manter no poder está dentro das “quatro linhas”, criamos um precedente perigoso. Sob esse raciocínio, qualquer presidente derrotado nas urnas poderia alegar que está agindo dentro da Constituição ao procurar maneiras de subverter o resultado eleitoral. O risco é transformar a Carta Cidadã em um documento maleável, sujeito a interpretações convenientes, abrindo espaço para autocracias. A democracia brasileira é jovem, mas resiliente. No entanto, é vulnerável a discursos que tentam normalizar ações que violam sua essência.
As palavras do ex-presidente não são meras bravatas políticas; são evidências de uma tentativa de golpe. A negação de um golpe com a justificativa de que tudo estava dentro das “quatro linhas” é, paradoxalmente, a própria confissão de que essas linhas foram forçadas a um limite perigoso. Não há "medidas possíveis" para evitar a diplomação de um presidente eleito sem que isso represente uma tentativa de usurpação do poder popular.
Se permitirmos que uma declaração dessa magnitude passe sem a devida resposta institucional, estaremos enfraquecendo os pilares que sustentam nossa República. A ordem constitucional não é uma abstração; ela é o que garante a estabilidade política, a alternância de poder e a proteção dos direitos fundamentais. Subverter esse processo é atacar o próprio coração do Estado Democrático de Direito.
O Brasil não pode retroceder aos tempos em que a vontade de poucos se sobrepunha à maioria. Ulysses Guimarães nos alertou sobre os riscos do autoritarismo e a importância de proteger a Constituição. Hoje, mais do que nunca, devemos honrar esse legado, rejeitando qualquer discurso que tente relativizar as regras claras e imutáveis que regem nossa democracia.
A confissão está feita. Cabe agora às instituições e ao povo brasileiro decidir se aceitaremos a erosão de nossa democracia ou se, como fizemos tantas vezes antes, reafirmaremos nosso compromisso com a liberdade e a justiça.
* Joel Elias é jornalista atuante na Amazônia.
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