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Além do tarifaço: As implicações geopolíticas da escalada protecionista americana

  • Foto do escritor: Solano Ferreira
    Solano Ferreira
  • 10 de abr.
  • 6 min de leitura

Por Joel Elias



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As recentes medidas protecionistas impostas pelo presidente norte-americano Donald Trump marcam um ponto de inflexão nas relações comerciais internacionais, sinalizando uma profunda alteração no xadrez geopolítico mundial. Ao impor tarifas generalizadas sobre produtos estrangeiros, com destaque para os chineses, a medida força uma mudança na política comercial dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que revela uma potencial reconfiguração das relações de poder no cenário global. Este movimento, longe de ser uma mera disputa comercial isolada, representa um desdobramento de uma complexa disputa hegemônica entre as duas maiores economias do mundo, com implicações significativas para o comércio internacional, as relações multilaterais e o desenvolvimento econômico de diversas nações.


A resposta imediata da China, impondo tarifas equivalentes sobre produtos americanos, incluindo metais de terras raras — grupo de elementos químicos essenciais para a fabricação de diversos produtos de alta tecnologia — demonstra o poder de retaliação do gigante asiático e sua posição consolidada como potência econômica global. Como afirma Kishore Mahbubani em sua obra A China Venceu? O Desafio Chinês à Primazia Americana: “O século asiático chegou mais cedo do que o Ocidente esperava e está transformando fundamentalmente a ordem mundial estabelecida após a Segunda Guerra Mundial” (MAHBUBANI, 2020). Essa observação encontra respaldo nos dados atuais: dos 191 países membros das Organizações das Nações Unidas (ONU), aproximadamente 156 têm a China como seu principal parceiro comercial, evidenciando a extensa influência econômica chinesa que ultrapassa as fronteiras asiáticas e alcança todos os continentes.


A dimensão dessa disputa transcende o aspecto meramente comercial, revelando uma competição tecnológica e estratégica entre as duas potências. É fato que as guerras comerciais contemporâneas são, em sua essência, disputas por supremacia tecnológica e liderança na economia digital do futuro. A menção ao Tik Tok nas negociações comerciais ilustra esta realidade: a plataforma chinesa, com algoritmos de engajamento significativamente mais eficientes que suas concorrentes ocidentais, representa um avanço tecnológico que desafia a tradicional hegemonia americana no setor digital. A própria oferta informal apresentada pelo presidente americano de “facilitação para a venda do Tik Tok em troca de redução de tarifas” evidencia como questões comerciais e tecnológicas se entrelaçam nesta nova fase das relações internacionais.


As consequências econômicas dessas medidas protecionistas são preocupantes e potencialmente graves. Thomas Piketty, em O Capital no Século XXI, já alertava para os riscos do protecionismo exacerbado. Para o economista francês, políticas protecionistas extremas podem proporcionar ganhos de curto prazo para determinados setores econômicos, mas historicamente provocam distorções econômicas significativas, elevação de preços ao consumidor e retração da atividade econômica global (PIKETTY, 2014). Esta análise encontra eco nas reações negativas dos mercados financeiros globais após o anúncio das novas tarifas, com quedas expressivas nas bolsas internacionais e volatilidade cambial aumentada, sinalizando a apreensão dos investidores quanto ao cenário econômico futuro.


Para o Brasil e outros países emergentes, este cenário apresenta tanto riscos quanto oportunidades. Por um lado, setores como o agronegócio brasileiro podem se beneficiar do redirecionamento de fluxos comerciais, conforme estudo preliminar da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que aponta possíveis ganhos de aproximadamente 4,8 bilhões de dólares em novos mercados para produtos agrícolas brasileiros. Por outro lado, a indústria nacional enfrentará maior pressão competitiva, tanto pela dificuldade de acesso ao mercado americano quanto pela potencial “inundação” de produtos asiáticos que, impossibilitados de entrar no mercado americano, buscarão novos destinos, incluindo o mercado brasileiro.


E a guerra comercial de Trump está provocando um redesenho das alianças econômicas globais. À medida que os Estados Unidos adotam uma postura mais unilateral e protecionista, observa-se uma aproximação entre nações que buscam alternativas para o comércio internacional. Joseph Stiglitz, em “Globalização e seus descontentamentos revisitados: antiglobalização na era de Trump”, destaca que em períodos de incerteza no sistema comercial internacional, países tendem a formar novos blocos econômicos como estratégia de mitigação de riscos (STIGLITZ, 2018). Esta tendência já se manifesta em movimentos como a aproximação comercial entre China, Japão e Coreia do Sul — tradicionalmente aliados dos EUA — e as renovadas discussões para um acordo entre o Mercosul e a União Europeia.


A aproximação entre potências asiáticas como China, Japão e Coreia do Sul, conforme recentes reuniões em Tóquio para discussão de um potencial acordo de livre comércio, sugere uma reconfiguração das relações econômicas na Ásia. Este movimento, aparentemente paradoxal considerando as históricas tensões geopolíticas entre estes países, pode ser compreendido à luz da teoria de Samuel Huntington sobre identidades culturais e econômicas regionais. Em “O Choque de Civilizações”, Huntington argumentava que identidades culturais e econômicas regionais eventualmente superariam rivalidades históricas, formando blocos de cooperação diante de desafios comuns" (HUNTINGTON, 1996). A crescente pressão americana parece estar catalisando exatamente este tipo de aproximação entre países que, apesar de diferenças históricas, compartilham interesses econômicos regionais.


A atual situação levanta questões sobre a sustentabilidade da abordagem americana. Embora a retórica protecionista possa ressoar junto a determinados segmentos do eleitorado americano, prometendo a restauração de empregos industriais perdidos, economistas como Paul Krugman alertam que políticas comerciais protecionistas raramente resolvem os problemas estruturais de uma economia, podendo inclusive agravá-los ao aumentar custos de produção e preços ao consumidor (KRUGMAN, 2020). A Reserva Federal de Atlanta já registra queda nos índices de confiança do consumidor americano aos níveis mais baixos em 12 anos, sinalizando as potenciais consequências domésticas negativas da escalada protecionista.


A resistência interna nos Estados Unidos às medidas protecionistas já começa a se manifestar. A votação no Senado americano contrária à imposição de tarifas ao Canadá, com alguns senadores republicanos votando junto aos democratas, indica fissuras no apoio legislativo às políticas comerciais da atual administração. Isso mostra que políticas externas que provocam significativos danos econômicos domésticos tendem a enfrentar crescente resistência interna, não só política como também popular, independentemente da retórica nacionalista que as justifique. É o que mostra o cenário atual, onde diversos setores da economia americana já manifestam preocupação com os potenciais impactos das tarifas impostas por Trump.


O impacto das medidas protecionistas pode também ser particularmente severo para consumidores e pequenas empresas americanas. Tarifas elevadas sobre importações são efetivamente um imposto indireto sobre consumidores domésticos, encarecendo produtos e reduzindo o poder de compra da população. Produtos como roupas, eletrônicos e automóveis devem sofrer aumentos de preços significativos, pressionando o orçamento das famílias americanas já afetadas pela inflação persistente.


A atual disputa comercial representa ainda um desafio ao sistema multilateral de comércio estabelecido após a Segunda Guerra Mundial. A preferência declarada por negociações bilaterais em detrimento de fóruns multilaterais como a Organização Mundial do Comércio (OMC) sinaliza uma potencial fragmentação do sistema comercial global. Martin Wolf adverte que o enfraquecimento das instituições multilaterais tende a beneficiar os países economicamente mais poderosos, capazes de impor condições em negociações bilaterais, aumentando as assimetrias no sistema internacional (WOLF, 2019). Esta tendência pode prejudicar particularmente países em desenvolvimento, com menor poder de barganha em negociações diretas com grandes potências.


A questão fundamental que emerge deste cenário é se as atuais tensões comerciais representam apenas uma fase transitória ou uma ruptura definitiva na ordem econômica internacional. Yaroslav Hrytsak, em A História Global: Uma Nova Perspectiva para o Século XXI, sugere que momentos de intensificação de disputas comerciais frequentemente precedem realinhamentos significativos nas relações de poder global, sinalizando transições na hegemonia mundial (HRYTSAK, 2022). Se esta interpretação estiver correta, as atuais tensões podem representar não apenas uma disputa comercial, mas um capítulo importante na transição de poder global do Ocidente para o Oriente.


A complexidade desta transição é ampliada pelos riscos de escalada além da esfera econômica. A combinação entre disputas comerciais, competição tecnológica e rivalidades estratégicas cria um cenário onde, como alertou o historiador Graham Allison em Destinado à Guerra: A América e a China Podem Escapar da Armadilha de Tucídides?, o risco de conflitos mais amplos aumenta quando uma potência estabelecida sente sua posição ameaçada por uma potência emergente (ALLISON, 2017). Esta observação, baseada na análise histórica de transições hegemônicas, adiciona uma dimensão preocupante ao atual cenário internacional. As transformações em curso no sistema internacional apresentam desafios significativos para todos os países, exigindo adaptação a uma nova realidade geopolítica e econômica.


Como sintetiza Branko Milanovic em Capitalismo, Sozinho: O Futuro do Sistema que Domina o Mundo, estamos presenciando não apenas disputas comerciais isoladas, mas uma reconfiguração fundamental do capitalismo global, com profundas implicações para as relações de poder e a distribuição de riqueza no Século XXI (MILANOVIC, 2020). Para navegar neste cenário de incertezas, será crucial desenvolver estratégias que equilibrem a proteção de interesses nacionais com a preservação de um sistema comercial internacional baseado em regras e cooperação multilateral.


Referências


ALLISON, G. Destinado à Guerra: A América e a China Podem Escapar da Armadilha de Tucídides? Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2017.

HRYTSAK, Y. A História Global: Uma Nova Perspectiva para o Século XXI. Lisboa: Edições 70, 2022.

HUNTINGTON, S. P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996.

MAHBUBANI, K. A China Venceu? O Desafio Chinês à Primazia Americana. Nova Iorque: PublicAffairs, 2020.

MILANOVIC, B. Capitalismo, Sozinho: O Futuro do Sistema que Domina o Mundo. São Paulo: Todavia, 2020.

PIKETTY, T. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

STIGLITZ, J. E. Globalização e Seus Descontentamentos Revisitados: Antiglobalização na Era de Trump. Nova Iorque: W. W. Norton & Company, 2018.

WOLF, M. As Transformações da Economia Mundial. Lisboa: Dom Quixote, 2019.




*Joel Elias é músico e jornalista atuante na Amazônia brasileira.

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