Por Joel Elias
Foto: Internet
O impacto ambiental das hidrelétricas na Amazônia tem sido uma questão de extrema importância nas últimas décadas, com especial destaque para o Rio Madeira, um dos principais afluentes da Bacia Amazônica. As duas grandes usinas hidrelétricas, Santo Antônio e Jirau, instaladas no estado de Rondônia, têm causado mudanças profundas no ecossistema local, afetando tanto a biodiversidade quanto a subsistência das populações ribeirinhas. A situação se agrava com as mudanças climáticas, que amplificam os fenômenos meteorológicos e criam um cenário de incerteza para o futuro da pesca artesanal na região.
A construção dessas hidrelétricas seguiu o modelo "fio d'água", que, em teoria, deveria minimizar os impactos ambientais por não exigir grandes reservatórios. No entanto, o que se observa na prática é uma alteração significativa na dinâmica hidrológica do rio, especialmente em relação aos picos irregulares de cheia e seca. Esses picos, agora mais frequentes e abruptos, afetam diretamente a vida aquática, em especial os peixes migratórios, como o matrinxã, pacu e jaraqui, que dependem de um ciclo natural de vazante e enchente para realizar a piracema — período em que sobem os rios para reprodução.
O desequilíbrio ecológico causado pelas barragens é evidente nas palavras de pescadores locais, que relatam uma drástica redução nas capturas. Antigamente abundantes, várias espécies de peixes desapareceram ou se tornaram escassas, não apenas prejudicando o comércio de pescado, mas também comprometendo a segurança alimentar das comunidades ribeirinhas, que dependem do peixe como sua principal fonte de proteína. O aumento no preço do peixe nos mercados locais reflete essa escassez, tornando-o inacessível para muitas famílias.
A situação não afeta apenas a pesca no Rio Madeira. A biodiversidade aquática da região, considerada uma das mais ricas do mundo, está em declínio. Um estudo recente realizado pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA) mostrou que as barragens fragmentam os habitats dos peixes, interrompendo suas rotas migratórias e levando ao colapso de populações de diversas espécies. Isso, aliado a outros fatores como desmatamento, mineração de ouro e expansão do agronegócio, coloca em risco a integridade ecológica da bacia do Madeira.
De acordo com a pesquisa, o fenômeno da fragmentação de habitats aquáticos na Amazônia não é novidade, mas as dimensões que o problema tem assumido com a construção das hidrelétricas são alarmantes. A dinâmica natural do rio, marcada por ciclos de cheia e seca, era essencial para a sobrevivência das espécies de peixes que utilizavam as planícies inundáveis e os igapós como locais de alimentação e reprodução. Com as mudanças nos padrões de vazante, os peixes ficam desorientados, incapazes de completar seus ciclos de vida. O resultado é um desequilíbrio generalizado, tanto para as espécies como para as comunidades humanas que dependem delas.
O Rio Madeira, que já foi uma das rotas mais importantes para a migração de grandes cardumes, como os de dourada e piramutaba, agora enfrenta uma escassez crítica. O declínio na quantidade de peixes migratórios tem forçado pescadores a se deslocarem para áreas mais distantes, o que aumenta os custos operacionais, já que precisam gastar mais com combustível, gelo e alimentos para longas viagens. Para muitos pescadores, a pesca simplesmente não compensa mais, e há relatos de que alguns estão abandonando a atividade em favor de outras fontes de renda, como o garimpo, que também tem impactos ambientais negativos.
Para piorar, ainda há o fenômeno das mudanças climáticas globais que agrava ainda mais a crise pesqueira na bacia do Madeira. Em 2023, a região experimentou uma das piores secas da sua história, com o nível do rio atingindo apenas 1,10 metro de profundidade, devido ao fenômeno El Niño e ao aquecimento do Oceano Atlântico Norte. Esses eventos extremos tornam a pesca ainda mais incerta, com períodos de seca que ocorrem fora de época, confundindo o comportamento natural dos peixes e prejudicando as já frágeis condições de vida dos ribeirinhos.
Essas mudanças deixaram os cientistas da Universidade Federal de Rondônia (Unir) e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) em alerta. Eles estão atentos ao fenômeno e vêm estudando o impacto das barragens sobre a variabilidade do fluxo de água no rio. Estudos hidrológicos mostram que as operações das barragens aumentam significativamente a variabilidade diária e subdiária do fluxo do rio, criando “eventos de reversão” — momentos em que o nível de água muda abruptamente de subida para descida ou vice-versa. Esses eventos, que quase dobraram na estação de Porto Velho, são diretamente atribuídos às oscilações na demanda por energia nas usinas hidrelétricas, e têm consequências devastadoras para os peixes.
A qualidade da água também tem sido prejudicada por atividades humanas, como mineração e desmatamento, que, junto com as hidrelétricas, contribuem para a degradação ambiental da bacia do Madeira. Um índice de qualidade da água (IQA) está sendo desenvolvido para monitorar as condições dos rios de águas brancas da Amazônia, como o Madeira, e os resultados preliminares sugerem que a saúde do rio está comprometida.
As comunidades ribeirinhas, que durante séculos dependeram do rio para sua subsistência, agora enfrentam uma nova realidade, em que a pesca artesanal se torna cada vez mais difícil e incerta. A ausência de políticas públicas eficazes para mitigar os impactos das hidrelétricas agrava o problema. Os pescadores relatam que não houve consultas públicas antes da construção das barragens e que os impactos foram subestimados pelas autoridades. Muitas famílias estão sendo forçadas a abandonar a pesca e migrar para outras atividades, um processo que ameaça a cultura e o modo de vida tradicional das populações ribeirinhas.
A crise pesqueira na Amazônia é um reflexo de um problema maior, que envolve a forma como o desenvolvimento econômico é conduzido na região. As hidrelétricas, vistas como fontes de energia "limpa" e sustentável, estão provocando um colapso ambiental que pode ter consequências irreversíveis para a biodiversidade e para as populações humanas que dependem dela. A falta de planejamento adequado e de mecanismos de compensação para as comunidades afetadas só intensifica a percepção de que o desenvolvimento está ocorrendo às custas da destruição de ecossistemas vitais.
O futuro da pesca no Rio Madeira é incerto. Com as populações de peixes em declínio e os custos crescentes para os pescadores, a atividade que já foi a principal fonte de sustento para milhares de famílias está em risco. As alternativas, como a piscicultura, ainda não são viáveis em larga escala, e as políticas governamentais de apoio às comunidades ribeirinhas são insuficientes para lidar com a magnitude do problema.
Pescadores de cidades como Humaitá, Manicoré e Novo Aripuanã, no Amazonas, e de Porto velho, em Rondônia, se perguntam até quando conseguirão continuar suas atividades, em meio às mudanças climáticas e aos impactos das hidrelétricas do Rio Madeira. Sem uma resposta clara das autoridades e sem medidas concretas para restaurar o equilíbrio ecológico do rio, a perspectiva é sombria. A pesca, que por séculos foi sinônimo de fartura e sustento para essas comunidades, está à beira do colapso.
Joel Elias é jornalista atuante na Amazônia.
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